Anonimato

O Anonimato Está de Volta e Não Vai Gostar do Que Vê

Já bastava os ativos tóxicos que Silicon Valley reinventou – agora temos tecnólogos imaturos, à solta e sem regulamentação, a criarem serviços que atingem milhões de cidadãos, cujas consequências são ainda desconhecidas.

Quando se analisa todas as redes sociais que existiam até recentemente, Facebook, LinkedIn, Instagram, Twitter, etc, verifica-se que todas têm algo em comum – são todas redes sociais com base na identidade.

O resultado da ligação direta entre o que é partilhado e quem o partilha, criou algo higienizado, banal e repleto de nonsense – o equivalente das vedetas no verão, todas lutando pelo seu lugar no centro das atenções. Nas redes sociais, o próprio principio da partilha, faz com que os utilizadores concentrem-se no seu lado mais favorável.

Todos vivemos numa cultura de tabloides, onde tudo que fazemos através da nossa presença online, é medida. O objectivo é para mostrarmos somente o nosso melhor lado, e muitas das vezes omitindo algo que não nos favorece – aquela fotografia de perfil tirada há 20 quilos atrás.

Isto não quer dizer que todos tenham o mesmo grau de sucesso em deixar o seu lado negativo privado, mas normalmente só se expõem desnecessariamente por distração, apagando de imediato o que os envergonhou – apagando sendo provavelmente um termo demasiado otimista.

Cada um de nós procura uma imagem consistente dado que estamos todos expostos, em graus variados, aos nossos familiares, amigos mas também desconhecidos. Para todos os efeitos, vivemos numa constante curadoria. Estamos sempre ligados e empenhados a manter a nossa reputação acima da dos outros.

A pressão é especialmente grande quando estamos mais vulneráveis, seja nos anos de adolescência, ou em locais ou circunstâncias aptas a atrair comentários negativos acerca da nossa pessoa.

Durante o Web 1.0, por defeito, o anonimato era a forma de estar online, dado a inexistência do social layer, ou seja a camada social que acabou por definir a Web 2.0, a evolução exasperada pela falta de contexto e honestidade intelectual que o anonimato trazia, levando a maioria a não confiar, quer na Internet em si, quer naqueles que a utilizavam, escondidos por detrás de um pseudônimo.

Na era 2.0, a grande força do Facebook foi a sua regra principal em que cada perfil tinha que ter um nome próprio bem como uma fotografia, algo que a Google também depois adoptou ao lançar Google+. Se por um lado ganhámos uma maior transparência e aparente segurança, por outro, muitos perderam a possibilidade de viverem as suas vidas online de forma honesta e sem preconceitos – causa e efeito.

O anonimato sofria cada vez mais de conotações negativas com programas como o “To Catch a Predator”, um programa de televisão em que predadores online eram convencidos a irem ter com um suposto menor que aparentemente estaria em casa sem os pais. Quando estes predadores chegavam, levavam com o Chris Hansen da CBS e a sua equipa que captava esta intervenção e publicava para todos verem em horário nobre. A causa era nobre e reforçava o perigo do anonimato e da Internet. Não é que este perigo não exista, pelo contrário, mas não é somente um resultado do anonimato, mas sim da sociedade em que vivemos – os perigos online eram assim iguais aqueles existentes offline.

MySpace, que estava no meio desta mudança de anonimato e identidade, acabou por sofrer e com a força do Facebook, perdeu milhões de utilizadores que escolheram transparência sobre anonimato ou autoexpressão.

Todos adoptaram o single identity, a identidade única, como defeito. O resultado foi o excesso de partilha e exposição – nossos amigos (Facebook), quem nos vê (LinkedIn), o que ouvimos (Spotify), onde estivemos (Foursquare) e até para onde vamos viajar (TripIt). Um mundo que Mark Zuckerberg procura ser frictionless, sem limites e/ou barreiras. Mas queremos mesmo que saibam tanto sobre nós?

Outros serviços como o Kred e Klout incentivam-nos a partilhar mais, cada vez mais, para que a nossa “reputação online” cresça – uma espécie de jogo continuo. Até Google nos força indiretamente a partilhar mais, seja através do Google + ou outros dos seus serviços, agora interligados, para melhorarmos o nosso próprio ranking na sociedade, ou neste caso, na primeira página de pesquisas – SEO.

Agora, com a nossa identidade apensa ao que fazemos online, nós agregamos vaidosamente, publicando e classificando (tags e hashtags) somente o que representa o mais positivo da nossa existência – um misto de narcisismo e negação – removendo qualquer referência menos positiva/verdadeira.

Interessante é agora ver a mudança novamente para o anonimato. Algo só possível dado a errada noção de privacidade dos utilizadores bem como a convicção de que conhecem como a Internet verdadeiramente funciona, adoptando agora as diferentes apps com base no anonimato e/ou privacidade, como o Whisper, Snapchat e Secret.

Mas na realidade, a Web tornou-se demasiada complexa e os seus utilizadores demasiados complacentes acreditando no lema da Google “Don’t be evil”, uma frase normalmente reservada para alguém com a consciência pesada.

Até Mark Zukerberg assume este novo fenómeno como algo capaz de afectar a sua rede social, optando por oferecer $ 3 mil milhões de USD para ficar com a Snapchat, explicando os seus motivos numa entrevista:

“I think Snapchat is a super interesting privacy phenomenon because it creates a new kind of space to communicate which makes it so that things that people previously would not have been able to share, you now feel like you have place to do so.

And I think that’s really important and that’s a big kind of innovation that we’re going to keep pushing on and keep trying to do more on and I think a lot of other companies will, too.”

Mas a segurança e privacidade de todos estes utilizadores que assumem viver num mundo anónimo é constantemente testada, seja pelos erros das apps que acabam por manter vestígios dos segredos ou através de hackers que conseguem ter acesso a informação privada dos utilizadores, publicando tudo online como gesticulação da sua arte.

Se houve alguma coisa que deveríamos ter aprendido com os documentos secretos da NSA revelados pelo Edward Snowden, é que desde que utilizemos a tecnologia, nada é segredo. Nada. Aliás, já deveríamos saber que a definição do segredo é algo que contamos a uma pessoa de cada vez.

Mas o futuro destas apps com base na privacidade, que levam os seus utilizadores a partilharem os seus mais íntimos segredos, tinham um obstáculo pela frente. É que com tempo, os utilizadores iriam perceber que os segredos só têm piada quando sabemos de quem são, e de quem falam. Até lá iríamos viver num mundo de semi-voyeurism, uma espécie de Casa dos Segredos com som mas sem imagem. Um local para descarregarmos a nossa bagagem sem consequências. Isto se acreditarmos verdadeiramente no conceito de privacidade de uma Web diferente, sem screenshots, sem hackers e sem um gigantesco arquivo do passado – Google cache. A app Secret surgiu como solução.

Mas o anonimato também impossibilita um trabalho sério por parte de jornalistas pressionados para aumentar pageviews, por questões comerciais, e num mundo de BuzzFeed e UPWorthy, em que a partilha raramente implica a leitura do artigo, o resultado pode ser, nas melhores das alturas embaraçoso, e nos piores dos dias, desastroso.

Enquanto a comunidade Reddit identificava a pessoa errada logo após o ataque à Boston Marathon, destruindo a vida de uma rapaz inocente e da sua família, jornalistas já cederam à tentação de serem os primeiros à noticia do dia com base na app Secret.

No inicio deste mês, a app Secret foi alvo de um “segredo” que dava como certo a venda de Evernote – “I work at Evernote and we’re about to get aquired”. Uma noticia boa de mais para ter que aderir à política de veracidade. Afinal, como questionar a fonte? A quem perguntar? Se calhar à própria Evernote.

Phil Libin

Mas esse passo foi temporariamente pulado, escolhendo Twitter como o veiculo mais eficaz para dar esta noticia em primeira mão. Algo que levou Phil Libin, CEO da Evernote, a negar a noticia publicamente – desnecessário se alguém tivesse tido o cuidado de verificar a noticia.

Quando Michael Heyward, co-fundador da app Whisper, entra numa sala cheia de estudantes universitários, a primeira pergunta que faz é “Podem colocar a mão no ar se ainda são virgens?”.  Ninguém levanta a mão. A pergunta é absurda, mas o que se segue, traduz-se para Michael Heyward, na relevância e importância da sua app no mundo de hoje de identidades públicas.

Michael pede então para desligarem as luzes e a cada um para vendarem os olhos. Faz então a mesma pergunta. Desta vez, ele verifica que 30% dos estudantes levantam as mãos assinalando a segurança que o anonimato traz.

Mas Michael, os técnicos e alguém que possa estar a gravar a apresentação não fecharam os olhos. E assim, este exemplo até demonstra a vulnerabilidade destas apps – é que nem todos concordam em fechar os olhos e alguns até o simulam, somente para enganar aqueles que acreditam na segurança do anonimato.

Existem outros exemplos onde o anonimato leva-nos para o mais mórbido da Web – MorbidReality, um subreddit cujo objectivo é partilhar o conteúdo mais mórbido da Web, aquele que nenhuma publicação, quer profissional, quer amador, iria alguma vez publicar ou partilhar. Uma coleção de mortes, acusações de violações e acidentes mortais, classificado como NSFL (Not Safe For Life), acima da classificação NSFW (Not Safe For Work).

Mas este site já conta com quase 140,000 seguidores, o que obviamente não inclui todos aqueles que visitam o site mas não subscrevem ao feed.

“Just before I created the subreddit, I became interested in death-related material,”

explica lilstumpz , moderador do grupo que só explica a razão da sua existência se manterem a sua identidade anónima. Também eu o exigia caso utilizasse a explicação dele para criar algo tão maléfico.

Enquanto lilstumpz criou um local que partilha o lado mais mórbido da Web, Heyward criou Whisper, uma app onde os utilizadores exprimem algo que nunca iriam partilhar com ninguém. Mas como o humano tem por natureza uma necessidade de ir além do já realizado, David Byttow (ex-Google e Square) e Chrys Bader (ex-Google e Treehouse) criaram a app Secret, uma rede social com base no anonimato onde qualquer pessoa pode lançar o seu segredo. A diferença é que quem está a ler pode verificar que o segredo veio, ou não, de um amigo ou amigo do amigo.

Utilizando a nossa lista de contactos, a app não nos diz quem mas confirma se o segredo veio ou não do nosso núcleo de conhecidos, lançando a suspeita e criando um ambiente de autêntica fofoca que inevitavelmente irá demonstrar o pior da nossa sociedade. Mas o que fica por explicar, é se este fenómeno é indicativo de quem nós somos ou se nos está a mudar, explorando o nosso lado mais fraco.

A ideia de criar Secret, explica um dos seus cofundadores, surgiu quando Byttow decidiu enviar uma mensagem anónima à sua namorada que estava em Paris. Infelizmente para nós, ela ligou para ele imediatamente a perguntar o que era aquela mensagem e se era ele. Digo infelizmente, pois ele correu o risco de ela responder-lhe “ainda bem que me contactaste pois o meu namorado é um imbecil”, ou algo parecido. Se calhar assim, não estaríamos novamente a revisitar os prós e contras do anonimato.

Já bastava os ativos tóxicos que Silicon Valley reinventou – agora temos tecnólogos imaturos, à solta e sem regulamentação, a criarem serviços que atingem milhões de cidadãos, cujas consequências são ainda desconhecidas e provavelmente imensuráveis.

“What we like to say is, we want our users to be on the edge — but not cross the line.”

Como se alguma vez eles conseguissem controlar o resultado. A sociedade não age conforme algoritmos matemáticos onde o resultado é um dado adquirido – isso é a programação. Vamos ter que esperar para perceber se foi de facto a sociedade que impactou a tecnologia ou vice versa.

Imagem: Wikipedia

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